Os tribunais deverão se organizar para atender a um público que até hoje esteve pouco presente nos serviços judiciários do país, a população em situação de rua. A resolução aprovada por unanimidade pelo Plenário do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) durante a 338º Sessão ordinária, realizada nesta terça-feira (21/9), estabelece aos órgãos que compõem o Poder Judiciário a criação de estruturas próprias para receber esse segmento populacional nas suas dependências, mas também ir ao encontro dessas pessoas, com serviços itinerantes. O texto foi produzido por determinação presidente do CNJ e do Supremo Tribunal Federal, ministro Luiz Fux, que nomeou, em março, um grupo de trabalho com representantes do Sistema de Justiça e de entidades da sociedade civil com atuação reconhecida na área.

338ª Sessão Ordinária – Foto: Romulo Serpa/Ag.CNJ.

A coordenadora do grupo, conselheira Flavia Pessoa, também foi relatora da proposta do Ato Normativo 0000671-18.2021.2.00.0000, que busca contemplar as necessidades de um grupo populacional heterogêneo que é caracterizado por experimentar pobreza extrema, falta de vínculos familiares e de moradia convencional regular. De acordo com o Decreto Presidencial n. 7.053/2009, o primeiro a conceituar a população em situação de rua para fundamentar as suas políticas públicas do governo federal, áreas degradadas das cidades servem como habitação – assim como os abrigos institucionais – e sustento.

A norma aprovada pelo Plenário conta com 40 artigos que detalham as formas como os tribunais deverão materializar o acesso à Justiça por meio desse serviço, que passa a ser especializado e prioritário. Uma equipe multidisciplinar será capacitada para garantir os direitos humanos desse público e articular suas demandas com a rede de assistência social. Para tornar efetivo o acesso, o atendimento deverá desburocratizado, com dispensa de agendamento prévio como requisito para o atendimento. Também será um serviço humanizado. Serão recebidas nas dependências do Judiciário, por exemplo, crianças sem a companhia dos responsáveis e serão assegurados guarda-volumes e local para guarda de animais de estimação da população.

O atendimento à população em situação de rua se alinha ao eixo de gestão da Presidência do ministro Luiz Fux que prioriza direitos humanos e meio ambiente.

Acesso negado

A primeira pesquisa do governo federal, realizada em 2008 pelo Ministério do Desenvolvimento Social, constatou que a discriminação contra essa parte da população a impedia de entrar em estabelecimento comercial, de acordo com 31,8% dos entrevistados. Outros 29,8% afirmaram serem barrados em transporte coletivo, 26,7% em bancos, 21,7% em órgãos públicos, e 18,4% disseram terem sido negados o direito a atendimento na rede de saúde.

De acordo com a resolução do CNJ, essas pessoas não terão o acesso à sede dos órgãos de Justiça barrado por impedimentos, como vestimentas e condições de higiene pessoal ou falta de identificação civil. O texto prevê ainda que os órgãos de assistência social poderão requisitar os documentos necessários à emissão de documentação civil básica aos Cartórios de Registro Civil de Pessoas Naturais, com acesso facilitado e gratuito à Central de Informações de Registro Civil de Pessoas Naturais (CRC). De acordo com o estudo, 13,9% dos respondentes não tiveram o direito à emissão de documentos e 24,8% das pessoas em situação de rua não possuíam quaisquer documentos de identificação.

Comprovante de residência tampouco poderá ser cobrado de um cidadão que recorrer à Justiça em busca de seus direitos. A resolução prevê que o endereço de um Centro de Referência de Assistência Social (CRAS) sirva como substituto em documentos requeridos pela Justiça.

Legitimidade

O acesso livre à Justiça para a população em situação de rua está previsto na legislação brasileira. De acordo com o artigo 3º da Constituição Federal, um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil é construir uma sociedade livre, justa e solidária, erradicar a pobreza e a marginalização, reduzir as desigualdades sociais e regionais, promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. Entre os objetivos de desenvolvimento da Organização das Nações Unidas (ONU), estruturados na Agenda 2030, está tornar cidades e assentamentos humanos inclusivos, seguros, resilientes e sustentáveis.

“Em virtude do que foi mencionado, conclui-se que a instituição da Política Nacional de Atenção a Pessoas em situação de rua e suas interseccionalidades, no âmbito do Poder Judiciário, em muito contribuirá para a humanização e aprimoramento dos serviços ofertados pelos Tribunais pátrios às pessoas em situação de rua”, afirmou em seu voto a conselheira, que também preside a Comissão Permanente de Democratização e Aperfeiçoamento dos Serviços Judiciários do CNJ.

Perfil

Com a Resolução, o CNJ espera incluir os cerca de 222 mil brasileiros que viviam nas ruas brasileiras, de acordo com estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) realizado em março do ano passado, primeiro mês da pandemia da Covid-19 no país. A pesquisa de 2008 realizada pelo governo federal estimou essa população em 50 mil pessoas. O estudo identificou um perfil masculino (82%) dessa população, com predominância de negros (67%) e jovens, com idade entre 25 e 44 anos (53%). Embora composta por 70% de trabalhadores que sabem ler e escrever na maioria (74%), essa parcela da população não era atendida por programas governamentais, de acordo com 88% dos respondentes da pesquisa.

Representatividade

A proposta de ato normativo foi escrita pelo Grupo de Trabalho, com a contribuição de representantes de tribunais federais, estaduais e do trabalho, além de um conjunto de entidades da sociedade civil com histórico de atuação na causa, como o Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua (MNMMR), o Instituto Nacional de Direitos Humanos da População de Rua (In RUA), o Movimento Nacional População de Rua (MNPR) e a Associação Nacional Pastoral do Povo de Rua.

Colaboraram ainda o Conselho Nacional dos Direitos Humanos (CNDH), o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, por meio do Comitê Intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento da Política Nacional para a População em Situação de Rua (CIAMP-Rua), o Colégio Nacional dos Defensores Públicos Gerais (CONDEGE), a Associação Nacional dos Defensores Públicos (ANADEP), além do Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e do Sistema de Execução de Medidas Socioeducativas (DMF/CNJ).

Referências

Duas iniciativas mantidas para assegurar o acesso à justiça às pessoas em situação de rua e albergados serviram como referência para a elaboração da norma do CNJ. O primeiro foi o “Rua do Respeito”, do Tribunal de Justiça de Minas Gerais com o Ministério Público de Minas Gerais e do Serviço Social Autônomo Servas. O segundo foi o programa “A Rua na Justiça – Uma experiência de acesso à justiça à população em situação de rua de São Paulo”, que teve início em setembro de 2011, originado de uma parceria entre o Juizado Especial Federal de São Paulo (JF-SP) e a Defensoria Pública da União (DPU).

Em abril de 2021, o Polos-UFMG, por meio do seu projeto Incontáveis, recorreu aos dados registrados no Cadastro Único para Programas Sociais do Governo Federal (Cadastro Único), considerando que nunca foi realizado um Censo Nacional com a população em situação de rua no país e elaborou um Relatório técnico-científico com dados referentes ao fenômeno da população em situação de rua no Brasil. O relatório encontra-se disponível aqui.

 

Extraído de: Agência CNJ de Notícias.

Escrito por MANUEL CARLOS MONTENEGRO.

Reveja a 338ª Sessão Ordinária no canal do CNJ no YouTube.

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