Dados do Polos de Cidadania da UFMG apontam que quase 19.000 pessoas vivem em avenidas e praças. Mais de 90% estão abaixo da linha da pobreza.

Rubi foi expulsa de casa e passou a viver nas ruas da região da Savassi | Foto: Cris Mattos/O Tempo.

Era 15 de agosto de 2021. Vivendo sob uma árvore frondosa na praça da avenida Mantiqueira, em Contagem, na região metropolitana de Belo Horizonte, Maria Pinto chegava aos 62 anos. No lugar da comemoração por mais um ano de vida, o olhar tomado pela angústia e a falta de esperança no futuro. Sem emprego, ela precisou deixar o Vale do Jequitinhonha em busca de uma oportunidade na cidade grande: também não encontrou nada, e o que restou foi morar nas ruas há mais de três meses.

Além das poucas roupas, restou apenas um colchão velho que divide com o companheiro. “Ele só conseguiu uns bicos, que ajudam a comprar comida, mas está com um problema na perna. Estou em uma praça dessa, na friagem, tomando chuva e sol, com 62 anos. Não quero continuar aqui, é muito difícil. Alguns usam drogas, bebida alcoólica, e eu não tenho costume disso. Gosto das minhas coisas, de ter tudo limpinho. Aqui não tem jeito”, contou emocionada.

Hoje, o único sonho da Maria pode parecer pequeno para muita gente, mas ela garante que transformaria a sua vida. “Só queria um lugarzinho para morar, pode ser um quarto só, e sair das ruas. Eu trabalhei a minha vida toda, em restaurante, buffet, só que agora não tem nada de emprego. É uma vergonha para mim viver dessa forma”, relatou. Retrato de um dos efeitos mais cruéis da crise econômica provocada pela pandemia, cada dia mais pessoas vivem como ela nas ruas de Minas Gerais.

Conforme o programa Polos de Cidadania da UFMG, a população em situação de rua chega a quase 19.000 pessoas, número que é superior aos habitantes de 653 municípios mineiros, e mais de 90% está abaixo da linha da pobreza – 70% está concentrada em apenas 12 cidades. E pelo menos metade desse contingente vive nas praças e avenidas de Belo Horizonte, sendo a maioria na região Centro-Sul. Em barracas improvisadas com cobertores, moradores ocupavam parte da calçada da rodoviária. No dia seguinte à visita da reportagem, a Polícia Militar (PM) foi flagrada retirando o grupo do local.

E o temor de serem obrigados, mais uma vez, a encontrarem um novo lugar já era grande antes mesmo da intervenção. Nas ruas há seis meses, uma jovem que pediu para não ser identificada contou que as ameaças eram constantes. “Esses dias, minha amiga saiu por conta da chuva e quando voltou não tinha mais nada, nem coberta para dormir. Eles chegam e levam tudo, somos tratados como se não fossemos seres humanos. Todos estão aqui por conta de algo que aconteceu na vida, alguma situação difícil que passou”, desabafou.

A jovem até já tentou procurar um emprego, mas quando disse que vivia nas ruas não foi chamada para a entrevista. “Tenho certeza que eu conseguiria sair daqui. É muita humilhação e preconceito, além do tratamento da prefeitura e da polícia. O meu namorado mesmo nem os documentos conseguiu tirar, a assistente social ajuda, manda encaminhamento, mas sempre tem que pagar uma taxa e não temos condições”, afirmou. Há mais de 20 anos na região, Diogo Rafael, 32, disse que nunca viu tantas pessoas chegarem nas ruas como atualmente.

“Cada dia chegam dois, três, seis pessoas. E nós acolhemos quem chega, aqui é igual coração de mãe. Moramos na rua, dormimos no chão, no papelão, mas somos gente, famílias. Muitos estão com crianças, não tem outro lugar para ir por ter sido despejado diante da falta de dinheiro para o aluguel, não tem nem o que comer”, relatou. E Diogo cobra também mais respeito. “Precisamos que olhem o morador de rua, não temos direito de nada, a polícia fala que somos bandidos. Nem um cachorro é tratado assim”, acrescentou.

Diogo cobra mais respeito nas abordagens da prefeitura e da PM | Foto: Cris Mattos/O Tempo.

Jovem quer uma bicicleta para recomeçar a vida

Em uma marquise na região da Savassi, Euller Alves, 22, quer construir uma nova vida. Há mais de três anos sem ver a família, ele quer uma bicicleta para poder fazer entregas em aplicativos e, assim, deixar as ruas. “Preciso trabalhar, pagar meu aluguel, chegar para a minha mãe e falar que estou com serviço, pagando minha casa, pedir desculpas e reerguer minha vida de novo. Na condição que estou ultimamente é difícil, é humilhante”. Sem conter as lágrimas, ele não esconde o sonho de um dia se tornar advogado.

Ao lado, estava a companhia Rubi, 21, que vai comemorar o quarto aniversário nas ruas. Em 2017, ela foi expulsa de casa pela família por não ser aceita como é. “Falaram que era para escolher se vestia de homem e entrava dentro de casa ou se me assumisse não ia morar lá mais. E não adianta uma pessoa fingir o que não é, ela não vai ser feliz. Eu vim parar na rua por conta do preconceito”, disse

Com uma cicatriz no rosto, ela já foi agredida, passou frio e fome. Mesmo assim, ainda mantém o sorriso no rosto e a alegria de viver. “Tem gente que acha que é só colocar um colchão na rua e pronto. Não é assim, e também não quero morrer aqui. Se eu parar para chorar, vou viver chorando, triste. Então tem que levar a vida como se nada tivesse acontecendo, na esperança que um dia vai melhorar”, enfatizou.

Em BH, 30% dos moradores que estão na rua chegaram durante a pandemia

O coordenador do Programa Polos de Cidadania da UFMG, André Luiz Freitas Dias, disse que 30% dos moradores que estão nas ruas atualmente chegaram durante a pandemia – os dados são do projeto Canto da Rua Emergencial, que até a última semana oferecia atendimentos diárias para a população, como banhos, alimentação, serviços sociais, saúde mental, entre outros. Para o especialista, o principal fator é justamente a perda de renda diante da crise econômica e a falta de moradia.

“Com a pandemia, esse quadro se alterou. Antes, os conflitos intrafamiliares eram o principal motivo que levavam as pessoas para as ruas. Agora, além dessa questão, temos escancarada a falta da moradia, o que é resultado de uma política pública estruturante para as populações mais vulnerabilizadas”, explicou. O professor também defende a implantação “urgente” de uma renda básica emergencial para quem vive nas praças e avenidas.

Plano Emergencial no Estado

No ano passado, a Secretaria de Estado de Desenvolvimento Social lançou o Plano de Ação Emergencial para garantir “os direitos da população em situação de rua, principalmente neste período de pandemia”. Desde então, a iniciativa teve a adesão de 11 dos 12 municípios com maior concentração desse público, sendo beneficiadas 12.209 pessoas – a pasta não informou a lista de cidades.

“Além disso, a Coordenadoria dos Direitos para População em Situação de Rua da Sedese vem atuando também como referência técnica e apoio em ações estratégicas nas 22 Diretorias Regionais da Secretaria no interior do Estado”, alegou a secretaria. Outra medida foi o repasse de R$ 62 milhões do Piso Mineiro de Assistência Social “para serem utilizados em serviços assistenciais, incluindo o atendimento às pessoas em situação de rua, se for uma necessidade local”, finalizou.

A reportagem solicitou uma entrevista com a presidente da Associação dos Municípios da Região Metropolitana de Belo Horizonte (Granbel), a prefeita de Vespasiano Ilce Rocha (PSDB), para falar sobre as dificuldades do poder público frente ao crescimento da população em situação de rua, mas não teve retorno. Já a Polícia Militar negou que tenha retirado os moradores da calçada da rodoviária, apesar das imagens terem flagrado a presença dos agentes na ação, e disse que as abordagens a esse público respeitam “a dignidade da pessoa humana”.

Cidade com a terceira maior população do estado, Contagem tem 511 moradores em situação de rua. De acordo com a prefeitura, a cidade conta com 100 vagas de acolhimento em dois abrigos. Ainda há um projeto para oferecer vagas de emprego nos restaurantes populares, cozinha comunitária e secretaria de obras para essa população – até o momento, foram contratadas nove pessoas.

O  diretor de proteção social especial da prefeitura da capital, Régis Spíndola, disse que a atuação do poder público em Belo Horizonte é sempre focado na voluntariedade da população para evitar qualquer truculência. “A assistência social não faz nenhum tipo de remoção ou encaminhamento involuntário desses usuários, o nosso trabalho é no sentido da sensibilização, mobilização, encaminhamento para a rede de acolhimento, da orientação quanto ao uso do espaço público e como que esses direitos da população de rua também podem conviver com os direitos dos demais grupos”, finalizou.

 

Extraído de: O tempo.

Escrito por LUCAS MORAIS.

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